No universo das relações, o dinheiro é um daqueles temas que a gente sabe que precisa conversar, mas nem sempre sabe como. Muitas vezes, falamos de grana como se fosse só número, logística, uma coisa chata que precisa ser resolvida o mais rápido possível. Mas, como sempre digo, dinheiro nunca é só dinheiro. Ele é um termômetro da nossa intimidade, da nossa confiança e, principalmente, do quanto estamos dispostos a dividir uma vida juntos.
É claro que não é prudente abrir o coração e a conta bancária no primeiro mês juntos. Mas, assim como a intimidade e a vontade de compartilhar a vida evoluem, a conversa sobre dinheiro também precisa amadurecer. Dá trabalho, sim, e exige sempre um tanto de coragem e abertura ao outro. Afinal, falar de dinheiro é falar de desejos, medos, prioridades e de qual vida a gente quer, individualmente e em parceria.
Um dos pontos centrais da conversa sobre dinheiro em casal tem a ver com o espaço que a instituição “casal" ocupa na nossa vida. Quanto tempo e energia queremos passar com a parceria, e quanto queremos guardar para nós mesmos?
Aqui, por exemplo, eu e o Leo trabalhamos ambos em casa e passamos boa parte do nosso lazer em conjunto. E por já passarmos tanto tempo juntos, a gente considera que a nossa parte individual merece um espaço bem protegido. São atividades importantes para nós nas quais o outro não participa. E se reservamos um tanto do nosso tempo e energia para as atividades conjuntas e outro tanto para as atividades individuais, o dinheiro precisa refletir essa divisão.
Não é um cálculo exato, nem eterno. A chegada de filhos, por exemplo, muda tudo de lugar. Às vezes há mudanças significativas de salário de um lado ou outro, transições de carreira, casos de doença, dentre muitas outras possibilidades que podem modificar os acordos. Mas, em geral, evitamos conflitos se a divisão do dinheiro for representativa dessa divisão de espaço e tempo. Se a gente se perde na logística do dia a dia e não para pra refletir sobre o que é individual e o que é coletivo nas nossas vidas, a chance de surgirem atritos que nem entendemos é enorme. Para complicar, às vezes o espaço individual é mais valioso para um do que para o outro, e essas negociações não são fáceis nem rápidas. Exigem paciência e avançam com o amadurecimento do casal, podendo ser, inclusive, o trabalho de uma vida inteira.
Mas a conversa ainda vai além. Precisamos encontrar uma forma que a renda individual encaixe na vida a dois. É nesse ponto que a matemática da relação se mistura aos entendimentos individuais de justiça e de quais os objetivos do relacionamento.
Para ilustrar, vamos pensar no João e na Maria. Digamos que eles já têm a conversa bem avanaçada e sabem quanto custa a vida deles juntos: entre casa, carro, filhos, mercado e lazer conjunto, somam R$8.000,00 por mês. O João ganha R$24.000,00 e a Maria, R$16.000,00. Logisticamente, a separação em duas contas individuais e uma conta conjunta funciona bem.
Falar de amor e falar de justiça
Aqui, a percepção de justiça varia muito e precisa ser conversada. Não existe certo ou errado, mas sim o que funciona para a realidade e os valores de cada casal.
Cenário 1: divisão meio a meio
Contribuição: Cada um paga R$4.000,00 das contas do casal.
Percepção de Justiça: Ambos contribuem com o mesmo valor absoluto, o que pode ser considerado justo pelo casal, a depender do caso.
Impacto Individual:
João: Dos seus R$24.000,00, ele dedica 16,7% ao casal. Sobram R$20.000,00 para seus gastos e poupanças individuais.
Maria: Dos seus R$16.000,00, ela dedica 25% ao casal. Sobram R$12.000,00 para seus gastos e poupanças individuais.
Consequência: Embora a diferença percentual não seja tão grande, em termos absolutos, o João tem R$8.000,00 a mais por mês para si. A longo prazo, se ambos pouparem uma parte do que lhes sobra, a desigualdade de patrimônio tende a crescer significativamente, o que pode impactar a tranquilidade e segurança individual em grandes decisões, como uma eventual separação ou mudanças de carreira. A justiça aqui é na contribuição nominal, não no peso proporcional na renda.
Essa abordagem tende a se tornar cada vez mais complicada conforme aumenta a disparidade de renda entre o casal. Se o padrão de vida do casal for estabelecido com base na renda de João, Maria pode enfrentar uma vulnerabilidade financeira significativa, dedicando uma porcentagem muito maior de sua renda para as despesas conjuntas e correndo o risco até de endividamento. Por outro lado, se o casal optar por um estilo de vida mais alinhado à renda de Maria para evitar sobrecarregá-la, João pode sentir-se insatisfeito, percebendo que o casal não está desfrutando de um padrão de vida que ele poderia proporcionar. Isso pode levá-lo a arcar com despesas adicionais sozinho, gerando um distanciamento financeiro (e provavelmente emocional) e, consequentemente, afetando a dinâmica do relacionamento. Em ambos os casos, embora os dois contribuam com a mesma quantia, há uma desigualdade proporcional que pode gerar frustração, desequilíbrio e até mesmo conflitos a longo prazo.
Cenário 2: divisão proporcional à renda
Contribuição: As contas do casal (R$8.000,00) são divididas na mesma proporção da renda. A renda total do casal é R$40.000,00 (João 60%, Maria 40%).
João: Paga 60% de R$8.000,00 = R$4.800,00.
Maria: Paga 40% de R$8.000,00 = R$3.200,00.
Percepção de Justiça: Muitos consideram mais justo, pois o peso da contribuição é proporcional à capacidade de ganho de cada um. Ambos abrem mão da mesma porcentagem de suas rendas para o casal.
Impacto Individual:
João: Dedica 20% da sua renda (R$4.800,00 / R$24.000,00). Sobram R$19.200,00 para ele.
Maria: Dedica 20% da sua renda (R$3.200,00 / R$16.000,00). Sobram R$12.800,00 para ela.
Consequência: Embora o João ainda fique com mais dinheiro em valores absolutos para si, a proporção do esforço é a mesma. Isso tende a manter uma equidade maior na capacidade de poupança e na construção de patrimônio individual ao longo do tempo. A justiça se dá na proporção do sacrifício relativo à renda.
Cenário 3: foco na construção compartilhada de patrimônio
Contribuição: O foco é que a renda de ambos primeiro cubra todas as necessidades e objetivos do casal (contas, lazer, reserva conjunta, investimento para o sonho do casal, como uma casa). O que sobra, depois que as metas do casal estão endereçadas, é para gastos e poupanças individuais.
Exemplo Prático: Digamos que o casal defina que precisa de R$8.000,00 para as contas básicas, R$1.000,00 para uma reserva conjunta para uma viagem e R$2.000 para uma reserva de emergência coletiva. Total: R$11.000,00. João e Maria decidem que, proporcionalmente, contribuirão para esses R$11.000,00.
João: Paga 60% de R$11.000,00 = R$6.600,00.
Maria: Paga 40% de R$11.000,00 = R$4.400,00.
Percepção de Justiça: Aqui, a justiça reside na colaboração para um projeto comum, a viagem, e na segurança compartilhada (a reserva é para emergências da vida a dois). O dinheiro é visto como um recurso do casal para realizar os sonhos conjuntos primeiro, antes dos individuais.
Impacto Individual:
João: Sobram R$17.400,00 (R$24.000,00 - R$6.600,00) para seus objetivos individuais.
Maria: Sobram R$11.600,00 (R$16.000,00 - R$4.400,00) para seus objetivos individuais.
Consequência: Esse modelo tende a fortalecer a união e a visão de futuro conjunta, pois o patrimônio e os sonhos são construídos em parceria desde o início. Os projetos individuais são valorizados, mas vêm após o "bolo" comum estar garantido. A justiça está no alinhamento de parte propósito, embora o espaço individual de ambos ainda seja maior que o do casal, e que João tenha um espaço individual ainda consideravelmente maior que o de Maria.
Cenário 4: É (quase) tudo nosso
Contribuição: João e Maria depositam suas rendas integrais (R$24.000,00 + R$16.000,00 = R$40.000,00) em uma conta conjunta. Todas as contas do casal (R$8.000,00) são pagas por essa conta.
Percepção de Justiça: Muitos consideram o mais justo porque todos os recursos são do casal, e a "mesada" individual é igual para ambos, independentemente do que cada um ganha. Funciona muito bem, sobretudo, para casais com uma grande diferença de renda, ou nos quais apenas um contribui com dinheiro (importante lembrar aqui que outras formas de contribuir com o relacionamento nem sempre são tão quantificáveis como o dinheiro - aqui os acordos e as conversas importam ainda mais, e a confiança é fundamental).
Impacto Individual:
Considerando a renda total de R$40.000,00 e os gastos do casal de R$8.000,00, sobram R$32.000,00.
Se eles decidirem por uma mesada individual igual para cada um, digamos, R$5.000,00 - um valor que ainda deixaria um bom montante para a poupança conjunta - o que acontece é:
João: Recebe R$5.000,00 para gastos individuais, abrindo mão de parte da sua renda em nome da parceria.
Maria: Recebe R$5.000,00 para gastos individuais, tendo um aumento significativo no seu poder de consumo individual em relação ao primeiro cenário.
Consequência: Este cenário pode promover uma maior igualdade de poder entre o casal, reforçando a ideia de "nossa renda, nosso patrimônio". É um modelo que exige confiança e alinhamento de valores - e é provável que a maior parte do lazer e dos projetos de ambos sejam conjuntos. A justiça aqui está na igualdade de recursos para a vida individual de cada um e o foco na construção conjunta de patrimônio. Por um lado, existe o risco de quem ganha mais ficar chateado por não ter apenas para si o fruto desse trabalho mas, por outro lado, evita ressentimentos que poderiam surgir por uma pessoa ter muito mais recursos (e, no fim, espaço) para o desenvolvimento da vida individual que a outra.
Esses são apenas alguns exemplos e não há jeito único. Depende da renda de cada um, das percepções de justiça, do momento da vida e do relacionamento, dos objetivos do casal e individuais. Ao longo da vida, a tendência é que os acordos se modifiquem. E é bom também que as conversas incluam questões sobre o que fazer em casos de incapacidade laboral temporária ou definitiva de um dos parceiros (seja por doença, licença-maternidade, transição de carreira etc).
É nessas conversas e no desenho dos diversos cenários - com reflexão e troca sobre as possibilidades e para os testes - que a gente consegue dar mais intencionalidade à vida financeira a dois, bem como construir confiança e alinhamento.
Por fim, ainda considero fundamental que, no espaço para as decisões conjuntas, a voz e a decisão de cada um tenham o mesmo peso, independente de quanto cada um ganha. Isso significa que, ao planejar os grandes movimentos do casal – seja uma viagem, a compra de um imóvel ou a construção de uma reserva – ambos se sentam à mesa com igual poder de escolha e opinião. Isso fortalece imensamente a confiança mútua.
Quando cada um sente que sua voz é valorizada e que suas contribuições são igualmente importantes, o nível de engajamento e comprometimento com os objetivos compartilhados aumenta significativamente. Se ambos os parceiros participam ativamente da definição de metas de poupança para uma aposentadoria e entendem verdadeiramente esses objetivos como seus, a probabilidade de ambos se dedicarem a economizar cresce exponencialmente. Essa dinâmica não só gera mais segurança na relação, mas também cria um senso de parceria e responsabilidade compartilhada que impulsiona o casal em direção a um futuro mais colaborativo, fortalecido e próspero.
E, lembro novamente, é muito prudente que o fortalecimento do coletivo não esmague o espaço individual. Cada um precisa manter alguma autonomia, aquela que não exige satisfação sobre cada cafezinho ou hobby pessoal. Esse espaço separado é crucial para a liberdade individual e para que a relação não se transforme em uma auditoria constante, mas sim em uma parceria baseada em confiança e respeito mútuo.
Quando falamos de dinheiro em casal, estamos falando também de projetos de vida: acumular patrimônio, investir para buscar autonomia em relação ao trabalho, planejar uma herança para os filhos, definir o quanto é preciso ter guardado para se sentir em segurança. É necessário conversar sobre dinheiro com frequência, porque as emoções de cada um falam muito mais alto que os números. O que é óbvio para um não o é necessariamente para o outro. É muito provável que os dois tenham tido exemplos e traumas diferentes em suas famílias de origem. É um processo contínuo de autoconhecimento e de construção conjunta.
Sempre com amor, paciência, cuidado e coragem.
Bruna Klöppel
Uau! Que texto! Me senti profundamente convidada a evoluir os acordos por aqui e tornar essa conversa mais frequente! Obrigada por isso 🌹